Com diminuição da mão de obra, pandemia afeta esfera contratual

Impactos podem ser reduzidos por medidas previstas na lei civil brasileira.

Por Nuno Correia dos Santos e Daniela Favaretto, sócios de Chiarottino e Nicoletti Advogados, fundado por Leandro Augusto Ramozzi Chiarottino

Após a Organização Mundial da Saúde decretar estado de pandemia em virtude da propagação do novo coronavírus, diversas medidas preventivas têm sido adotadas para conter a sua disseminação, tanto pelas pequenas e grandes empresas, quanto pelas pessoas físicas, ou por ato voluntário ou por imposição dos Estados. Dentre as medidas implementadas, certamente, a mais impactante é o isolamento domiciliar que, inevitavelmente, se traduz na diminuição de mão de obra, fazendo com que estabelecimentos comercias, indústrias e fábricas sejam gradativamente fechados.

Diante de tantas incertezas, uma das certezas é que a pandemia produzirá efeitos imediatos, não apenas na forma de as pessoas se relacionarem, mas igualmente na economia e nas relações empresariais, devido, entre outras causas: (i) à insuficiência de mão de obra; (ii) às restrições às viagens e aos meros deslocamentos; (iii) à paralisação total ou parcial de fornecedores, atingindo a cadeia de suprimentos (“supply chain”); (iv) às restrições legais para o exercício de atividade; e (v) à redução ou interrupção da atividade dos clientes. A esses fatores acrescem, ainda, a forte valorização da moeda norte-americana e a queda abrupta das bolsas de valores, como é o caso da BOVESPA.

Neste cenário, se faz de suma importância a análise legal dos impactos que a COVID-19 trará na esfera contratual, pois se não forem adotadas, neste momento, condutas corretas, as consequências jurídicas decorrentes das medidas tomadas poderão ser irreversíveis no futuro quando a pandemia passar.

Em relação aos contratos não concluídos, mas cujas negociações estão em andamento, as partes devem estipular as cláusulas e obrigações com a devida cautela, levando em consideração a situação atual e possíveis desenvolvimentos, devendo ainda atentar-se para o dever geral de conduta, consagrado no Código Civil.

Por outro lado, para os instrumentos já firmados, surgem muitos questionamentos relacionados ao descumprimento dos contratos com fundamento nas consequências da pandemia. De fato, muitas empresas não são (ou não serão) capazes, em razão dessas decorrências, de cumprirem obrigações contratuais anteriormente assumidas.

A lei civil brasileira prevê algumas respostas ou medidas que, conforme o caso, poderão ser aplicadas às situações de impossibilidade de realizar a prestação contratual ou de excessiva onerosidade em virtude das consequências da pandemia. Dentre essas soluções, destacamos as seguintes:

  • Não responsabilidade pelos prejuízos resultantes de caso fortuito e força maior

O Código Civil estabelece como regra geral que, na hipótese de ocorrência de um fato necessário cujos efeitos não teriam sido possíveis evitar ou impedir, a parte a quem cabe cumprir a obrigação não responderá pelos prejuízos causados.

Por outro lado, o Código também prevê que se o caso fortuito ou evento de força maior ocorrerem durante o atraso do cumprimento da obrigação, a parte em atraso responde pelo eventual dano decorrente desse descumprimento, a menos que possa provar isenção de culpa, ou que o dano ocorreria mesmo se a obrigação tivesse sido cumprida a tempo e modo.

Ressalte-se que a parte interessada deverá demonstrar que o evento em causa foi a motivação necessária da impossibilidade de cumprimento, o que, em alguns contextos, pode ser complexo.

Ademais da regra geral, o Código estipula consequências específicas da força maior em relação a uma série de situações ou contratos específicos como no comodato, na prestação de serviços, na empreitada, no depósito, na comissão, na agência/distribuição e no transporte. Além disso, a lei autoriza que as partes, por meio de previsão expressa no contrato, afastem a regra geral, estabelecendo que a responsabilidade persiste em casos fortuitos ou de força maior.

  • Extinção da obrigação por impossibilidade da respectiva prestação em virtude de caso fortuito ou de força maior

Além da exclusão de responsabilidade nos termos destacados acima, a lei contém ainda um princípio geral de que uma obrigação se extingue se a prestação se tornar impossível sem culpa da parte a quem caiba cumprir a obrigação, como acontece nos casos fortuitos e de força maior.

  • Correção pela via judicial do preço em razão de desproporção manifesta entre o valor da prestação e o momento da sua execução por motivos imprevisíveis que vieram a ocorrer

Esta disposição legal visa assegurar o equilíbrio contratual que foi manifestamente afetado por um evento superveniente e inesperado.

  • Resolução pela via judicial de contratos se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis

A lei faculta à parte prejudicada o direito de pedir a resolução nos contratos considerados de “execução continuada” (contratos que se cumprem por meio de prestações que se mantêm ou se repetem ao longo do tempo) ou de “execução diferida” (contratos em que a realização da prestação ocorre em momento posterior à sua celebração).

  • Ilicitude do abuso do direito

A lei considera ilícito o exercício de um direito que excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Saliente-se que a admissibilidade da aplicação dos mecanismos acima previstos tem que ser cuidadosamente avaliada caso a caso. Com efeito, além das circunstâncias concretas, é imprescindível uma análise profissional dos termos do contrato que foi firmado, não só pela essencialidade de conhecer o ajuste de interesses que as partes quiseram estabelecer, mas também porque, em muitos casos, o próprio instrumento contratual pode conter cláusulas (algumas válidas outras não) que preveem a aplicação das soluções acima enunciadas ou mesmo outras. Nesse sentido, são exemplos, a cláusula que regula os casos fortuitos e de força maior, a cláusula de “hardship” (que fundamentalmente permite a revisão dos termos do contrato na hipótese de o equilíbrio contratual ser afetado por eventos imprevisíveis) ou a “material adverse change clause” (muito utilizada em operações de fusões e aquisições e que autoriza uma das partes a cancelar uma transação se ocorrer uma mudança substancial negativa que reduza o valor do objeto do negócio).

Recomenda-se ainda, quando possível, que antes que uma das partes tome a decisão de notificar a outra sobre a impossibilidade de cumprir o quanto acordado e/ou invocando (por exemplo, uma situação de caso fortuito/força maior ou de onerosidade excessiva), tente previamente renegociar o contrato, com a finalidade de modificá-lo e/ou extingui-lo, para evitar o risco de ser confrontado com uma rescisão contratual por descumprimento de cláusulas e obrigações estabelecidas, e/ou uma execução de multas e, eventualmente, com um requerimento de indenização pela parte que se sentir lesada. Obviamente, antes de tomar qualquer ação, será também aconselhável verificar se o evento está ou não coberto por algum seguro.