Por Leandro Augusto Ramozzi Chiarottino, Mirella Guedes e Bruna Queiroz Riscala
A Lei Federal nº 14.181/21, que entrou em vigor em 2 de julho de 2021 (“Lei nº 14.181/21” ou “Lei do Superendividamento”), estabeleceu normas que visam aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, por meio de alterações promovidas no Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto do Idoso.
A Lei do Superendividamento foi sancionada em um momento de inadimplência generalizada no país, em virtude, principalmente, da crise acarretada pela pandemia da COVID-19, que vitimizou quase todos os setores da economia por conta das medidas emergenciais tomadas pela Administração Pública para conter a disseminação do vírus, tratando-se de um instrumento jurídico para solucionar a exclusão social de pessoas físicas endividadas.
Com efeito, a Lei nº 14.181/21 se pauta no princípio do crédito responsável, que possui três vieses: o primeiro deles relacionado ao poder público, ao qual incumbe a criação de políticas para auxiliar os devedores e prevenir atitudes do mercado que possam colaborar com o autoendividamento dos consumidores; o segundo diz respeito aos próprios credores, aos quais é vedado criar situações que estimulem o endividamento da população, como por exemplo a elaboração de contratos ininteligíveis de serviços de créditos, que o consumidor médio não consegue compreender; o terceiro viés concerne aos próprios devedores, sendo necessário que este grupo se conscientize financeiramente, por meio de uma formação educacional que possibilite a utilização dos recursos financeiros de forma adequada.
Conforme conceituação do artigo 54-A, §1º, da Lei nº 14.181/21, “entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”.
Contudo, as disposições acerca da prevenção e do tratamento do superendividamento não são aplicáveis “ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, mediante contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo ou alto valor”, de acordo com o disposto no art. 54-A, §3º, da Lei nº 14.181/21.
Entre as medidas previstas pela lei em comento, cumpre destacar a exigência de transparência e clareza no fornecimento dos serviços de crédito e na venda a prazo, devendo o fornecedor informar ao contratante a respeito do custo efetivo total, a taxa efetiva mensal de juros, bem como demais informações relevantes. Essa medida objetiva evitar o superendividamento do consumidor, que terá o panorama completo da dívida para realizar seu planejamento financeiro de forma mais clara e eficaz. Além disso, a medida também visa prevenir a prática dos juros abusivos nos contratos.
Outra medida assegurada pela Lei nº 14.181/21, em seu artigo 54-C, é a vedação, na oferta de crédito, de qualquer tipo de assédio ao consumidor, bem como coação ou constrangimento para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito. Em seguida, o art. 54-D define condutas que devem ser adotadas pelo fornecedor de crédito, a exemplo da informação adequada e completa do crédito oferecido, considerando, inclusive, a idade do consumidor, a avaliação “responsável” das respectivas condições de crédito e, ainda, efetuar a entrega do contrato não somente ao consumidor, mas também aos demais coobrigados. Em caso de descumprimento dessas obrigações, o consumidor poderá obter judicialmente a redução dos juros, encargos ou qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato, sem prejuízo de determinadas sanções ao fornecedor e de indenização por perdas e danos, inclusive morais, ao consumidor.
Ainda, o art. 54-G prevê condutas que são vedadas ao fornecedor de produtos ou serviços de créditos, como a cobrança de quantias que tenham sido contestadas pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar. Outra conduta vedada é o impedimento de que o consumidor obtenha, no caso de utilização fraudulenta do cartão de crédito, a anulação ou o bloqueio do pagamento, frisando-se, nesse ponto, que as administradoras de cartões de crédito deverão observar as regras pertinentes à nova legislação.
Uma das principais novidades trazidas pela Lei nº 14.181/21, que certamente demandará especial atenção dos fornecedores de crédito em geral, inclusive de quaisquer fornecedores de produtos e serviços que vendem a prazo, diz respeito ao tratamento do superendividamento com a introdução de um mecanismo destinado às pessoas físicas que se assemelha à recuperação judicial de empresas, denominado “processo de repactuação de dívidas”, cujo objetivo primordial é a negociação dos débitos em bloco.
Tal processo poderá ser instaurado a requerimento do consumidor superendividado e acarretará a realização de audiência de conciliação com a presença de todos os credores, na qual o consumidor apresentará um plano de pagamento aos credores, com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservado o mínimo existencial, em procedimento similar à assembleia geral de credores prevista na Lei de Recuperação Judicial e Falência (“Lei nº 11.101/2005”).
Ressalte-se que o não comparecimento dos credores à audiência acarretará a suspensão da exigibilidade do débito, a interrupção dos encargos de mora e a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida, se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor. Outrossim, o pagamento dos credores ausentes ocorrerá somente após a satisfação das dívidas dos credores presentes à audiência conciliatória.
Caso ocorra acordo na audiência de conciliação, o juiz proferirá decisão que descreverá o plano de pagamento, que deverá conter: (i) medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida; (ii) menção à suspensão ou extinção das ações judiciais em curso; (iii) data a partir da qual o consumidor será excluído de banco de dados e de cadastro de inadimplentes; e (iv) condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.
Se a conciliação não obtiver êxito, a pedido do consumidor, o juiz instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes por meio de plano judicial compulsório, procedendo à citação dos credores cujos créditos não tenham integrado o acordo celebrado, que terão o prazo de 15 (quinze) dias para juntar documentos e razões da negativa de aderir ao plano.
Destaca-se também que o art. 104-C da Lei do Superendividamento dispõe que compete concorrente e facultativamente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, a exemplo do Departamento Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon), a fase conciliatória e preventiva no processo de repactuação de dívidas.
Por fim, foi acrescentado o parágrafo 3º ao artigo 96 do Estatuto do Idoso, prevendo que “não constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso”.
Depreende-se, portanto, que as instituições financeiras e fornecedores que vendem a prazo deverão ficar bastante atentos às alterações promovidas pela nova Lei do Superendividamento, criando mecanismos, no âmbito judicial e extrajudicial, que permitam o acompanhamento e ciência, em tempo real, da instauração de processos de repactuação de dívidas pelos consumidores superendividados, sob pena de suspensão da exigibilidade do débito, interrupção dos encargos de mora e sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida.